Nevava sobre a serra…
Das agulhas dos pinheiros caíam
farrapos branquinhos que imediatamente, como por milagre logo se
transformavam em cristais transparentes dando lugar a uma paisagem
digna de um postal ilustrado.
Duma chaminé ao longe saíam
rolos de fumo em espiral. À medida que me aproximei a passos largos,
ansioso por chegar, sentia no ar frio um forte cheiro a café que
aquece a alma mesmo sem o saborear.
Apesar dos anos este cheiro tão
agradável é diferente de todos os cafés que bebi nos vários
países por onde andei, e não foram poucos.
A porta está entreaberta e eu
chamo baixinho:
- Mãe… Mãe... Mãe… Jaquina,
ó Jaquina?
Como não há qualquer resposta,
resolvo contornar a casa que conheço como a palma das minhas mãos.
Lá bem no fundo do quintal, no
meio das couves verdes, salpicadas de farrapitos de neve e a terra
castanha manchada de branco vejo um vulto envolto num xaile preto
deixando apenas à vista um rosto meigo e doce, apesar de cansado da
dureza da vida; um rosto cheio de rugas, queimado pelo ar da serra.
Envolvi-a num terno abraço, que a
assustou, virando-se de repente. Porém o susto deu lugar à alegria,
pois já não nos víamos havia alguns anos.
Entrámos
em casa e já sentados ao lume saboreámos enfim o tal café que há
tanto tempo me fazia crescer água na boca, acompanhado de um pedaço
de presunto e uma fatia de pão caseiro que ela mesmo amassara e
cozera no forno comunitário da aldeia.
Depois de saciada a fome do corpo
começámos a pôr as nossas conversas em dia, e foi assim até
chegar a hora de ouvir o sino da aldeia a chamar para a missa do
galo, e um pouco a medo, talvez receando uma resposta negativa lá
perguntou:
-Vens com a Mãe? Ao que lhe
respondi:
- Claro, porque não haveria de
acompanhá-la…? Já tenho saudades… - E aí foi ver um
brilhozinho feliz naqueles olhinhos doces.
Foi pôr a sua melhor saia, lenço,
xaile e botim que só saíam da arca em ocasiões festivas.
Lá saímos de casa com o braço
dela bem agarrado ao meu, pois o caminho era bastante sinuoso até
para mim.
Quando chegamos ao largo da igreja
fez questão de me mostrar a todos os presentes, dizendo orgulhosa:
- Vejam como o meu menino cresceu
e olhem que até já vem doutor de verdade.
E já num tom mais triste
acrescentou:
- Só é pena que eu tenha que
ficar aqui sozinha, sem ter quem me cure das minhas maleitas.
Foi então que eu lhe dei a boa
nova que ela tanto esperava:
- Mãe, não é bem assim… foi
isso mesmo que eu cá vim fazer; passar o Natal consigo e depois
levá-la para minha casa. Pois é esse o meu presente de Natal.
Tenho a certeza que o seu coração
de noventa e cinco anos esteve em perigo por alguns segundos até
conseguir articular a primeira frase:
- É verdade meu filho…?
Assistimos
à missa, tal como eu a recordava da minha infância; com o beijo no
pé do menino Jesus e cânticos aos pastorinhos. No final foi uma
sessão de abraços e votos de boas festas.
No caminho de regresso a casa e um
pouco cansada, perguntou algo receosa:
- Pensaste bem se sempre me queres
levar para tua casa? Olha filho, eu não posso ajudar em nada, pois
as minhas forças já não são o que eram.
Dizendo-lhe que não tinha que se
preocupar, pois tinha chegado a hora dela descansar, prometi-lhe que
voltaríamos à aldeia na Páscoa pois bem sabia o quanto ela gostava
de a passar na sua terra.
Arranjou então uma mala com as
suas coisas e, já à porta de casa olhou para traz, passando em
revista tudo aquilo que tinha sido a sua vida e do qual nunca se
tinha separado.
Com voz serena disse-me:
- Olha filho, deixo mais do que
levo, pois aqui fica toda a minha vida. Mas valeu a pena ter vivido
para ter o melhor Natal da minha vida, desde que tu nasceste e ter a
certeza que não vou estar só quando Deus me quiser levar pois tenho
quem me feche os olhos com amor.
Esforcei-me por segurar as
lágrimas para que aquele momento não lhe tirasse a alegria
espelhada no seu rosto… A verdade é que eu receava que jamais
voltasse a ver a sua casa.
Felizmente Deus não quis assim e ainda vive feliz.
Tem já seis bisnetos passando um
mês em casa de cada filho onde partilha as nossas alegrias e troca
amor e carinho com filhos, netos e bisnetos que muito a respeitam e
adoram.
Dedico
este conto à Mãe de meu marido, que minha Mãe é também com um
beijo e um abraço do tamanho do mundo.
Março
2007 Vinadolfo