segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Conto de Natal


Nevava sobre a serra…
Das agulhas dos pinheiros caíam farrapos branquinhos que imediatamente, como por milagre logo se transformavam em cristais transparentes dando lugar a uma paisagem digna de um postal ilustrado.
Duma chaminé ao longe saíam rolos de fumo em espiral. À medida que me aproximei a passos largos, ansioso por chegar, sentia no ar frio um forte cheiro a café que aquece a alma mesmo sem o saborear.
Apesar dos anos este cheiro tão agradável é diferente de todos os cafés que bebi nos vários países por onde andei, e não foram poucos.
A porta está entreaberta e eu chamo baixinho:
- Mãe… Mãe... Mãe… Jaquina, ó Jaquina?
Como não há qualquer resposta, resolvo contornar a casa que conheço como a palma das minhas mãos.
Lá bem no fundo do quintal, no meio das couves verdes, salpicadas de farrapitos de neve e a terra castanha manchada de branco vejo um vulto envolto num xaile preto deixando apenas à vista um rosto meigo e doce, apesar de cansado da dureza da vida; um rosto cheio de rugas, queimado pelo ar da serra.
Envolvi-a num terno abraço, que a assustou, virando-se de repente. Porém o susto deu lugar à alegria, pois já não nos víamos havia alguns anos.


Entrámos em casa e já sentados ao lume saboreámos enfim o tal café que há tanto tempo me fazia crescer água na boca, acompanhado de um pedaço de presunto e uma fatia de pão caseiro que ela mesmo amassara e cozera no forno comunitário da aldeia.
Depois de saciada a fome do corpo começámos a pôr as nossas conversas em dia, e foi assim até chegar a hora de ouvir o sino da aldeia a chamar para a missa do galo, e um pouco a medo, talvez receando uma resposta negativa lá perguntou:
-Vens com a Mãe? Ao que lhe respondi:
- Claro, porque não haveria de acompanhá-la…? Já tenho saudades… - E aí foi ver um brilhozinho feliz naqueles olhinhos doces.
Foi pôr a sua melhor saia, lenço, xaile e botim que só saíam da arca em ocasiões festivas.
Lá saímos de casa com o braço dela bem agarrado ao meu, pois o caminho era bastante sinuoso até para mim.
Quando chegamos ao largo da igreja fez questão de me mostrar a todos os presentes, dizendo orgulhosa:
- Vejam como o meu menino cresceu e olhem que até já vem doutor de verdade.
E já num tom mais triste acrescentou:
- Só é pena que eu tenha que ficar aqui sozinha, sem ter quem me cure das minhas maleitas.
Foi então que eu lhe dei a boa nova que ela tanto esperava:
- Mãe, não é bem assim… foi isso mesmo que eu cá vim fazer; passar o Natal consigo e depois levá-la para minha casa. Pois é esse o meu presente de Natal.
Tenho a certeza que o seu coração de noventa e cinco anos esteve em perigo por alguns segundos até conseguir articular a primeira frase:
- É verdade meu filho…?
Assistimos à missa, tal como eu a recordava da minha infância; com o beijo no pé do menino Jesus e cânticos aos pastorinhos. No final foi uma sessão de abraços e votos de boas festas.
No caminho de regresso a casa e um pouco cansada, perguntou algo receosa:
- Pensaste bem se sempre me queres levar para tua casa? Olha filho, eu não posso ajudar em nada, pois as minhas forças já não são o que eram.
Dizendo-lhe que não tinha que se preocupar, pois tinha chegado a hora dela descansar, prometi-lhe que voltaríamos à aldeia na Páscoa pois bem sabia o quanto ela gostava de a passar na sua terra.
Arranjou então uma mala com as suas coisas e, já à porta de casa olhou para traz, passando em revista tudo aquilo que tinha sido a sua vida e do qual nunca se tinha separado.
Com voz serena disse-me:
- Olha filho, deixo mais do que levo, pois aqui fica toda a minha vida. Mas valeu a pena ter vivido para ter o melhor Natal da minha vida, desde que tu nasceste e ter a certeza que não vou estar só quando Deus me quiser levar pois tenho quem me feche os olhos com amor.
Esforcei-me por segurar as lágrimas para que aquele momento não lhe tirasse a alegria espelhada no seu rosto… A verdade é que eu receava que jamais voltasse a ver a sua casa.


Felizmente Deus não quis assim e ainda vive feliz.
Tem já seis bisnetos passando um mês em casa de cada filho onde partilha as nossas alegrias e troca amor e carinho com filhos, netos e bisnetos que muito a respeitam e adoram.

Dedico este conto à Mãe de meu marido, que minha Mãe é também com um beijo e um abraço do tamanho do mundo.

Março 2007 Vinadolfo